domingo, 19 de dezembro de 2010

Mea Culpa, ou O Inferno Somos Nós

Não tenho dúvida de que todos os ateus - assim como todos os cães - merecem o Céu (afinal, precisamente por não acharmos que ele exista com inicial maiúscula, fazemos o bem sem esperar recompensa). Infelizmente (para mim, hoje), o universo é muito mais "governado" pelo acaso do que a maioria de nós gosta de pensar (e por isso sei que noutro dia a fortuna me sorrirá). Assim, embora tenha precisado percorrer mais de quinhentos quilômetros do meu paraíso à beira-rio para o purgatório que é Salvador, bastou um evento fortuito para me lançar, em menos de um minuto, do confortável círculo da classe média brasileira para o que Dante não previu ser o décimo círculo do Inferno: o da ineficiência do Estado no Brasil.

Claro, não faltam em Salvador motoristas irresponsáveis, fazendo a todo momento manobras arriscadas, vivendo da sorte (e calhou de, no dia de um deles dar azar, esse azar ser meu), mas também isto pode ser atribuído à ineficiência do Estado, pois num lugar em que a Polícia e o Judiciário realmente funcionassem, as pessoas certamente seriam mais cuidadosas com seus atos, por temer as consequências (é esta, afinal, como já implicado, a mentalidade da maioria).

A partir do momento em que o beócio saiu da garagem de seu prédio sem olhar e atingiu meu carro, eu já sabia que o dia estava perdido - e talvez todo o final de semana. Claro, eu e minha esposa ficamos admirados quando duas viaturas policiais passaram pelo local e simplesmente ignoraram o acidente. Porém somente ficamos realmente estupefatos quando descobrimos que não há polícia técnica em Salvador - a menos que o acidente resulte em danos corporais a alguém; e ainda mais quando afinal conseguimos fazer o dito beócio nos acompanhar à delegacia para registrar a ocorrência e, lá chegando, vimos dezenas de viaturas paradas no pátio.

Refletindo melhor, porém, concluí que faz sentido. Afinal, a perícia somente teria utilidade num processo judicial; no entanto, sabendo que os processos judiciais na Justiça Comum baiana são eternos (eu mesmo tenho uma liminar deferida há mais de ano, sem esperança de cumprimento!) e que, portanto, nenhuma utilidade terá a perícia, para que perder tempo com ela? Como disse, faz sentido... Assim, após esperarmos em vão por cerca de duas horas, troquei o pneu cortado no impacto e arrastei o carro, com direção torta, à bendita delegacia, cujo único funcionário era um velhinho impaciente que não se animava sequer a criar problemas por falta de documentação, provavelmente para não ter mais trabalho. E cada vez chegavam mais pessoas para preencher aquela papelada inútil...

Deixando de lado meu dia de inferno pessoal, como podemos suportar o inferno como se fosse normal, como se pudéssemos passar toda a vida numa redoma com condicionador de ar para manter longe o calor? E isso quando já temos, desde 1988, nosso próprio projeto de paraíso na Terra, em forma de Constituição. Ainda assim, se o Estado não nos proporciona educação, saúde, moradia, segurança, lazer, previdência etc., nós criamos nossa redoma com colégios e faculdades particulares, planos de saúde e de previdência privada, condomínios fechados. Se o trânsito também é infernal, nós nos esprememos em redomas ainda menores, construindo prédios onde podemos ir de casa ao trabalho apenas passando de um andar para outro, ou condomínios onde tudo se concentra (mercado, escola, academia, consultórios, escritórios). Se o Estado tampouco cuida de erradicar a pobreza e de reduzir desigualdades, organizamos redes privadas de assistência aos carentes e nos sentimos bem com isso - como de fato deveríamos! Mas assim vamos vivendo e esquecendo do inferno que nos rodeia. Até que por acaso caímos nele, damos de cara com o Capeta e percebemos quão impotentes somos diante de tão indolente e incapaz Leviatã.

Resumindo o mea culpa, no fundo somos todos culpados, por ação e, principalmente, por omissão, pela perpetuação desse inferno...

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Nihil novi sub sole

Nihil novi sub sole


Dong zhi, Yule, Yaldā, Saturnalia, Kračún, Christmas, Natal. Parece que nada há mesmo de novo sob o Sol, ou em torno dele. Há milênios celebramos, na noite mais longa do ano (ao menos para nossos ancestrais no hemisfério norte, como o Inti Raymi dos Incas, celebrado em junho, ainda nos lembra), o início do renascimento do Sol e, com ele, o retorno do verde, da vida, da fertilidade. Não fosse a inclinação do imaginário eixo terrestre, não teríamos as quatro estações; pouca diferença faria o movimento de translação da Terra em sua órbita elíptica ao redor do Sol. Sem o contraste do rigor invernal com a exuberância primaveril, teriam nossos pré-históricos antepassados percebido a importância do Sol para a sua sobrevivência?
Certamente não teríamos a Árvore de Natal para nos lembrar da persistência da vida, mesmo sob as condições mais severas. Mas nem por isto nossos antepassados deixariam de imaginar que eram deuses os gigantes que viam vagando pelos céus, nem deixariam de associá-los às coisas cotidianas, fossem aquelas externas (a guerra, as tempestades), internas (o amor, a beleza, a sabedoria) ou mesmo metafísicas (como a passagem do tempo). Provavelmente ainda teríamos nossa semana de sete dias – e talvez o mais importante deles ainda fosse associado ao Sol, o maior dos deuses antigos. Uma coisa, porém, certamente seria diferente: não teríamos o “mistério” da morte e ressurreição de tantos deuses. Apolo, Dioniso, Osíris, Mitra, Jesus. “Nasce um Deus. Outros morrem. A Verdade/ Nem veio nem se foi: o Erro mudou.” Assim começa Fernando Pessoa seu pequenino poema intitulado Natal.
Mas que importa que nome damos ao que há de divino, de sublime, nesta data? Os mitos são apenas o veículo para a verdade: o fato de que nós temos quatro estações, e elas têm reflexo em nossa psicologia. Nós nos acostumamos, desde há milênios, a dividir nossas vidas em ciclos; talvez assim seja mais fácil seguir adiante, e uma das razões para isto é o fato de sabermos que cada inverno, cada contratempo, problema, vicissitude, conflito, revés – tudo vai passar. O Sol voltará a brilhar, a primavera virá, a vida florescerá novamente e tudo será melhor.
Já se observou que as necessidades preenchidas pelos deuses variam de acordo com a sociedade. Em sociedades pequenas e simples, com tecnologia rudimentar, intimidade e solidariedade surgem naturalmente entre seus membros e o papel dos deuses consiste em protegê-los contra as forças da natureza, sobre as quais possuem nenhum controle. Sociedades grandes e complexas, tecnologicamente avançadas, por outro lado, podem prever e controlar, em certa medida, o mundo físico, mas seus membros se ressentem do individualismo, da alienação, da solidão.
É evidente que nós nos distanciamos do significado original da celebração do solstício de inverno, já que nossa sobrevivência não está mais tão intrinsecamente ligada aos ciclos da natureza. Não mais necessitamos de deuses para nos trazer chuvas, ou boas colheitas, ou fertilidade para os animais e para nós mesmos. Mas se ainda necessitamos deles para satisfazer anseios emocionais e para nos fazer lembrar que as pessoas à nossa volta são seres humanos, que seja este então o significado desta data. Apesar das idealizações românticas, verdadeiro altruísmo, puro, desinteressado, é algo que não existe na natureza – mas talvez seres pensantes, sencientes e sociais como nós possam enfim criar algo de novo sob o Sol.
Compreender os ciclos da vida deveria fazer com que nos preparássemos melhor para o próximo inverno – o que nem sempre acontece. Neste momento, contudo, o que importa é celebrar a renovação, o renascimento interior – e, quem sabe, contribuir para uma renovação exterior também, tornando o mundo um pouco melhor no novo ciclo que se inicia. Afinal, como cantaram os Beatles, é um tolo quem se acha o máximo por fazer do mundo um lugar mais frio.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

A morte sem deuses

No Antigo Egito, o deus solar Ra era o governante dos céus, a contraparte celestial do Faraó; muito mais ao gosto popular, porém, era Osíris; originalmente uma divindade local de Mendes, no delta, seu poder se espalhou após o fim do Antigo Reinado, até que ele se tornou o deus mais popular do Egito, em parte devido ao fato de ser ele o deus dos mortos, o "deus morto" que assegurava a seus seguidores a vida eterna - como Jesus viria a fazer, 1.400 anos mais tarde.

Para os antigos nórdicos, a eternidade seria passada no salão de banquetes de Valhalla, para onde eram levados pelas Valquírias após serem mortos em batalha e onde permaneceriam até que viesse o fim dos tempos, quando auxiliariam Odin e os demais deuses durante os eventos de Ragnarok, que incluiriam vários desastres naturais e outras catástrofes, sendo o mundo, ao final, submergido em água - apenas para reemergir renovado e fértil, para ser repopulado pelos sobreviventes humanos e pelos deuses renascidos.

Na tradição chinesa, na africana e também na dos índios norte-americanos, práticas rituais de veneração dos ancestrais se baseiam na crença de que os membros mortos da família não apenas continuam a existir - e a ter necessidades muito semelhantes às nossas (o que, claro, lembra-me de Nosso Lar), mas possuem interesse nos assuntos dos vivos, assim como a capacidade de influenciar suas ações (o que demonstra, mais uma vez, quão pouco tem de originalidade as várias versões do Cristianismo).

De qualquer modo, não há dúvida de que é imensa a necessidade psicológica da espécie humana de acreditar que sua existência - diversamente de tudo o mais que vemos ao nosso redor - não terá fim. Todo o aparato mitológico/teológico gerado por esta "tentação transcendental", visto por este prisma, não é mais do que uma resposta desesperada, surgida da recusa em encarar a inevitabilidade da morte. Mas se esta necessidade é tão forte assim, o que fazer quando se chega à conclusão de que nenhuma destas mitologias/teologias tem mais fundamento do que qualquer outra? Como viver tendo a certeza de que o fim realmente chegará?

Pessoalmente, a morte nunca me assustou; muito mais aterradora seria a possibilidade de viver com alguma limitação severa a que não estou acostumado (cegueira, paralisia, Alzheimer etc.). Na verdade, minha perspectiva é diametralmente oposta à daqueles que buscam um propósito cósmico/divino para a vida humana: é precisamente a certeza da morte (da morte "de verdade") que torna a vida tão preciosa. Como diz Katsumoto (personagem de Ken Watanabe no filme O Último Samurai), "como os brotos [da cerejeira], nós estamos todos morrendo [desde o momento em que nascemos]"; por isso, é preciso "viver a vida a cada respiração".

Num mundo sem deuses que nos assegurem vida eterna, muito mais dolorosa do que a própria morte é a morte de outros, daqueles a quem amamos. Neste Dia dos Mortos, fui rever as minhas. Com isto, quero dizer não apenas que "desencavei" fotografias, mas principalmente que fui ao local onde estão enterradas para evocar lembranças, para renovar a dor como forma de mostrar a mim mesmo o quanto elas foram importantes. Sua morte não me ensinou ainda lição alguma, a não ser talvez por mostrar de modo chocante a fragilidade da nossa existência, e a importância de cuidarmos uns dos outros enquanto temos a chance. De resto, apenas o vazio que elas deixaram e o esforço por equilibrar-me entre a melancolia - a que não se pode dar tanta chance - e o olvido - tão tentador em meio às obrigações cotidianas. E nem mesmo os deuses poderiam tornar mais fácil este equilíbrio.

SÓLO LA MUERTE

Hay cementerios solos,
tumbas llenas de huesos sin sonido,
el corazón pasando un túnel
oscuro, oscuro, oscuro,
como un naufragio hacia adentro nos morimos,
como ahogarnos en el corazón,
como irnos cayendo desde la piel al alma.

Hay cadáveres,
hay pies de pegajosa losa fría,
hay la muerte en los huesos,
como un sonido puro,
como un ladrido sin perro,
saliendo de ciertas campanas, de ciertas tumbas,
creciendo en la humedad como el llanto o la lluvia.

Yo veo, solo, a veces,
ataúdes a vela
zarpar con difuntos pálidos, con mujeres de trenzas muertas,
con panaderos blancos como ángeles,
con niñas pensativas casadas con notarios,
ataúdes subiendo el río vertical de los muertos,
el río morado,
hacia arriba, con las velas hinchadas por el sonido de la muerte,
hinchadas por el sonido silencioso de la muerte.

A lo sonoro llega la muerte
como un zapato sin pie, como un traje sin hombre,
llega a golpear con un anillo sin piedra y sin dedo,
llega a gritar sin boca, sin lengua, sin garganta.
Sin embargo sus pasos suenan
y su vestido suena, callado, como un árbol.

Yo no sé, yo conozco poco, yo apenas veo,
pero creo que su canto tiene color de violetas húmedas,
de violetas acostumbradas a la tierra
porque la cara de la muerte es verde,
y la mirada de la muerte es verde,
con la aguda humedad de una hoja de violeta
y su grave color de invierno exasperado.

Pero la muerte va también por el mundo vestida de escoba,
lame el suelo buscando difuntos,
la muerte está en la escoba,
es la lengua de la muerte buscando muertos,
es la aguja de la muerte buscando hilo.
La muerte está en los catres:
en los colchones lentos, en las frazadas negras
vive tendida, y de repente sopla:
sopla un sonido oscuro que hincha sábanas,
y hay camas navegando a un puerto
en donde está esperando, vestida de almirante.

Pablo Neruda

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Poeminha inacabado

a noite é longa
e minhas asas, curtas;
mas enfim alcanço
teu peito, pouso
inevitável
para o meu coração
- pássaro perdido, diluído
na manhã dos teus olhos

terça-feira, 24 de agosto de 2010

“Quem quer viver para sempre?, perguntava a canção do Queen. Esta pergunta retórica e sua resposta óbvia eram o resultado da óbvia resposta a outra pergunta feita alguns versos antes:
O que é esta coisa que constrói nossos sonhos
E no entanto foge de nós?

A vida, claro, é o que constrói nossos sonhos – e então parece fugir por entre nossos dedos impotentes. Qual a conclusão inicial da canção a respeito disso?

Não temos chance.
Tudo está decidido para nós.
Este mundo tem apenas um único doce momento
Reservado para nós.

Mas certamente – já que estamos vivos – nós temos, de fato, uma chance, e uma chance única. Emily Dickinson com razão escreveu: “Que nunca será de novo/ é o que torna a vida tão doce.” Nós estamos fadados a morrer, isto é certo. Todavia, a certeza da morte não é bastante para que tudo esteja decidido. Entre este momento e aquele de nossa morte, ao longo de todos aqueles doces momentos (mesmo os mais duros, ainda assim doces, pelo mero fato de serem únicos e reais; já dizia Pessoa: “O mesmo breve ser da mágoa pesa-me,/ Que, inda que mágoa, é vida.”), nós – e ninguém mais – temos que decidir o que fazer do precioso tempo que temos, muito mais precioso porque sabemos com certeza que acabará, mais cedo ou mais tarde.

Alguns dizem que, não importa quão tarde venha o final, a vida humana ainda é curta demais. Isto não é verdade. Dois milênios atrás, Sêneca já sabia disso: “Não é que nós tenhamos um tempo curto, mas sim que nós desperdiçamos muito dele. A vida é longa o bastante, e nos foi dada em suficientemente generosa medida para permitir a realização das maiores coisas, se a sua totalidade for bem investida. Porém, quando ela é desperdiçada em luxo e descuido, quando não é devotada a uma boa finalidade, forçados afinal pela necessidade última nós percebemos que ela passou e se foi, antes que nós percebêssemos que ela estava passando. Portanto, a vida que recebemos não é curta, mas nós a fazemos assim; nem temos dela falta, mas apenas desperdício. Assim como uma grande riqueza é dilapidada num momento quando chega às mãos de um mau proprietário, ao passo que uma riqueza limitada, se confiada a um bom guardião, aumenta com o uso, assim nossa vida é abundantemente longa para quem a conduz de modo adequado.”

Claro, não importa quão longa ou plena seja uma vida humana, ela eventualmente chega ao fim. Não há escapatória: como diz outra canção, nós somos todos poeira ao vento; se fecharmos nossos olhos apenas por um momento, o momento terá passado; tudo que fazemos desmorona; e nem mesmo a terra e o céu durarão para sempre. Embora nós já não estaremos mais aqui há muito tempo, alguns bilhões de anos no futuro o Sol – e com ele nosso planeta – deixará de existir. É inevitável.

Mas e daí? Susan Ertz observou que “milhões daqueles que anseiam pela eternidade não sabem o que fazer de si mesmos numa tarde chuvosa de domingo.” E isto é precisamente o que não deveria acontecer – o que não pode acontecer: o desperdício desta oportunidade única de estar vivo.

O aspecto que na verdade se revela mais problemático não é a nossa própria morte, mas a perda daqueles que amamos. Contudo, ao reinterpretar os versos iniciais da nossa canção, nós conseguimos atingir sua conclusão final e nossa única solução possível: se não há tempo para nós, senão agora; se não há lugar para nós, senão aqui; então o que você deve fazer – de fato, o que você tem que fazer – é

[…] tocar minhas lágrimas com seus lábios
Tocar meu mundo com as pontas dos seus dedos
E nós podemos ter o para sempre
E nós podemos amar para sempre.”

Afinal, é aqui e agora que nós vivemos, não noutro mundo ou na eternidade. Mesmo aqueles que permanecem esperando para sempre, sem perceber que não haverá uma segunda chance. “Para sempre é o nosso hoje”, diz nossa canção. Nós podemos fazer melhor: hoje é nosso sempre.

domingo, 15 de agosto de 2010

Festa Literária de Paraty

Terminei de chegar de viagem. Por muito tempo protelei minha ida à Flip, mas este ano consegui estar lá. Ainda bem...
Caríssimos (sei lá quem(s)!), os amantes da literatura, ou melhor, o amantes psicóticos da literatura não podem deixar de ir à Flip. Explico porque...
A Flip é uma Meca dos apaixonados pela literatura. A cidade é linda e tal... mas isto não é o mais importante... (apesar da cidade ser linda mesmo!). O barato de viver a Flip é saber que todos os que estão naquele lugar nutrem uma paixão por uma coisa que também é uma paixão sua!
Eu andava pela cidade, muito bem acompanhado, primeiro por minha adorável mulher (e também apaixonada por literatura) e depois por todos com quem cruzava e olhava nos olhos, encontrando o tempo todo com um companheiro, com gosto, opção ou até mesmo um desvairio pelas letras. É como se encontrar em outras pessoas completamente desconhecidas. Um sentimento diferente, pois ao mesmo tempo em que se está chegando num lugar novo e diferente, as pessoas te tratam como se já te conhecessem ou como se tivessem com você um segredo em comum.
A prova disto está em qualquer um que você queira abordar perambulando pela cidade e perguntar-lhe, sem cerimônias, sobre algum assunto literário. Garanto-lhes: alguma conversa ou até mesmo uma boa amizade poderá sair daí...
É claro que até mesmo o mundo da literatura encontra segmentos e subgrupos, você vai encontrar de fãs da literatura de Umberto Eco à fãs da nova literatura "vampiresca", mas o principal não é isto, o segredo em comum não é este... O segredo coletivo de todos os que vão à Flip, quase como um segredo maçônico, é saber que os outros que estão ali, e que se debandaram de suas cidades sei lá de onde, encontrando tempo e dinheiro, num mundo onde ninguém mais tem tempo e dinheiro sobrando, foram para Paraty para encontrarem outros seres que também fariam o mesmo esforço que você fez, por amor às letras.
Essa é a questão... A cumplicidade sutil de olhares, a gentileza além da normalidade, os sorrisos e a simplicidade com que todos se tratam é que faz a diferença na Flip. Como tratar mal uma alma irmã? Foi assim que me senti lá.
É óbvio que isto não é uma regra geral.. também encontrei seres brutalizados, eremitas mal humorados, antisociais, aproveitadores e criaturas que simplesmente não conseguiram tirar seu manto social tosco e se abrir para o momento que estavam vivendo. Só conseguia dar risada dessas criaturas que ficavam, por exemplo, catando os banquinhos de papelão (de montar) dados pelo Itaú, para levarem para casa (não me perguntem porque!). Me lembro sempre nestes momentos da cena da morte da viúva de Zorba, o grego, onde todos aqueles vizinhos correm, se matando, para ficar com os pertences da velha que acabara de morrer. Ô tristeza de almas pequenas...
Algumas pessoas vão à Flip para encontrarem os autores e tal... todas elas também voltam satisfeitas, pois a cidade é muito pequena e depois das palestras e dos autógrafos os autores sempre estão caminhando para conhecer o lugar e você sempre os encontra quando menos está esperando. A maioria deles é bem receptiva, pelo menos os deste ano foram... Não fui à Flip com este propósito, pois com exceção de Ferreira Gullar, não era anteriormente fã de nenhum dos que estavam lá, no entanto tive boas surpresas com as palestras de Isabel Allende, Benjamin Moser, Luiz Felipe de Alencastro/FHC, Patrícia Melo, Lionel Shriver e Salman Rushdie, na verdade, a maioria delas nem parecia palestra era mais como uma conversa mesmo, bem informal e espontâneo.
Enfim, aconselho muito a experiência aos que nunca foram, pois apesar de não ser uma viagem muito barata (pois os preços em Paraty dobram durante a festa!), é muito revigorante para o espírito dos que extraem prazer dos livros...
Abraço a todos!

sábado, 14 de agosto de 2010

Chico, sempre Chico, o melhor de todos, fura bolo e cata piolho...

"MEU CARO AMIGO, CHICO BUARQUE"

“Meu caro amigo, as coisas estão melhorando”

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Por Daniel Cariello e Thiago Araújo, da revista Brazuca | Foto: Jorge Bispo
“Se tiver bola, eu dou a entrevista”. Essa foi a única exigência do nosso companheiro de pelada, Chico Buarque, numa caminhada entre o metrô e o campo. Uma bola. E eu acabara de informar que o dono da redonda não viria à pelada de quarta-feira. Éramos dez amantes do futebol, órfãos.
Sem saber se esse era um gol de letra dele para fugir da solicitação de seus parceiros jornalistas, ou uma última esperança, em forma de pressão, de não perder a religiosa partida, eu, que não creio, olhei para o céu e pedi a Deus: uma pelota!
Nada de enigma, oferenda ou golpe de Estado. Ele estava ali, o cálice sagrado da cultura brasileira, que sucumbiu ao ver não uma, mas duas bolas chegarem à quadra pelas mãos de Mauro Cardoso, mais conhecido como Ganso. A partir daí, nada mais alterou o meu ânimo e o da minha dupla de ataque-entrevista, Daniel Cariello. Apesar de termos jogado no time adversário do ilustre entrevistado, tomado duas goleadas consecutivas de 10 x 6 e 10 x 1, tínhamos a certeza de que ele não iria trair dois dos principais craques do Paristheama, e sua palavra seria honrada.
Mas o desafio maior não era convencer o camisa 10 do time bordeaux-mostarda parisiense a ceder duas horas de sua tarde ensolarada de sábado. O que você perguntaria ao artista ícone da resistência à ditadura, parceiro de Tom Jobim, Vinicius de Morais e Caetano Veloso, escritor dos best sellers “Estorvo”, “Benjamin”, “Budapeste” e “Leite Derramado”, autor de “A banda”, “Essa moça tá diferente”, “O que será”, “Construção” e da canção de amor mais triste jamais escrita, “Pedaço de mim”?
Admirado e amado por todas as idades, estudado por universitários, defendido por Chicólatras, oráculo no Facebook, onipresente nas manifestações artísticas brasileiras – sua modéstia diria “isso é um exagero”, mas sabemos que não é –, sua reação imediata ao ser comparado a Deus foi “em primeiro lugar, não acredito em Deus. Em segundo, não acredito em mim. Essa é a única coisa que pode nos ligar. Então, pra começo de conversa, vamos tirar Deus da mesa e seguir em frente”.
Enfim, ainda não creio que entrevistamos Deus, quase sem falar de Deus. Mas foi com ele mesmo que aprendi uma lição, talvez um mandamento: acreditar em coisas inacreditáveis. (Thiago Araújo)

Você assume que não acredita em Deus, mas existem trechos nas suas músicas como “dias iguais, avareza de Deus” ou “eu, que não creio, peço a Deus”. No Brasil, é complicado não acreditar em Deus?

Eu não tenho crença. Eu fui criado na Igreja Católica, fui educado em colégio de padre. Eu simplesmente perdi a fé. Mas não faço disso uma bandeira. Eu sou ateu como o meu tipo sanguíneo é esse.
Hoje há uma volta de certos valores religiosos muito forte, acho que no mundo inteiro. O que é perigoso quando passa para posições integristas e dá lugar ao fanatismo. O Brasil talvez seja o pais mais católico do mundo, mas isso é um pouco de fachada. Conheço muitos católicos que vão à umbanda, fazem despacho. E fica essa coisa de Deus, que entra no vocabulário mais recente, que me incomoda um pouquinho. Essa coisa de “vai com Deus”, “fica com Deus”. Escuta, eu não posso ir com o diabo que me carregue? (Risos). Tem até um samba que fala algo como “é Deus pra lá, Deus pra cá – e canta – Deus já está de saco cheio” (risos).
Você já foi em umbanda, candomblé, algo do tipo?
Já, eu sou muito curioso. A mulher jogou umas pipocas na minha cabeça, sangue, disse que eu estava cheio de encosto. Eu fui porque me falaram “vai lá que vai ser bom”. Passei também por espíritas mais ortodoxos, do tipo que encarnava um médico que me receitou um remédio para o aparelho digestivo. Aí eu fui procurar o remédio e ele não existia mais. O remédio era do tempo do médico que ele encarnava (risos).
Já tive também um bruxo de confiança, que fez coisas incríveis. Aquela música do Caetano dizia isso muito bem, “quem é ateu, e viu milagres como eu, sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar.” Eu vi cirurgias com gilete suja, sem a menor assepsia, e a pessoa saía curada. Estava com o joelho ferrado e saía andando. Eu fui anestesista dessa cirurgia. A anestesia era a música. O próprio Tom Jobim tocava durante as cirurgias. Eu toquei para uma dançarina que estava com problema no joelho. Ela tinha uma estreia, mas o ortopedista disse “você rompeu o menisco”. Ela estreou na semana seguinte, e na primeira fila estavam o ortopedista e o bruxo (risos).
Uma vez, estava com um problema e fui ao médico. Ele me tocou e não viu nada. Aí eu disse “olha, meu bruxo, meu feiticeiro, quando ele apertava aqui, doía”. Ele começou a dizer “mas essa coisa de feitiçaria…” e atrás dele tinha um crucifixo com o Cristo. Daí eu perguntei “como você duvida da feitiçaria, mas acredita na ressurreição de Cristo?”. Eu acho isso uma incongruência. Gosto de acreditar um pouco nisso, um pouco naquilo, porque eu vejo coisas inacreditáveis. Eu não acredito em Deus, acredito que há coisas inacreditáveis.
De vez em quando você dá uma escapada do Brasil e vem a Paris. Isso te permite respirar?
Muito mais. Eu aqui não tenho preocupação nenhuma, tomo uma distância do Brasil que me faz bem. Fico menos envolvido com coisas pequenas que acabam tomando todo o meu tempo. Aqui, eu leio o Le Monde todos os dias, e fico sabendo de questões como o Cáucaso, os enclaves da antiga União Soviética, que no Brasil passam muito batidos. O Brasil, nesse sentido, é muito provinciano, eu acho que o noticiário é cada vez mais local.
Meu pai, que era um crítico literário e jornalista, foi morar em Berlim no começo dos anos trinta. Foi lá, onde teve uma visão de historiador, de fora do país, que ele começou a escrever Raízes do Brasil, que se tornou um clássico. A possibilidade de ter esse trânsito, de ir e voltar, eu acho boa. É como você mudar de óculos, um para ver de longe e outro para ver de perto.

Nesse seu vai e vem Brasil-França, o que você traria do Brasil para a França, e vice-versa?
Eu traria pra cá um pouquinho da bagunça, da desordem. Os nossos defeitos, que acabam sendo também nossas qualidades. O tratamento informal, que gera tanta sujeira, ao mesmo tempo é uma coisa bonita de se ver. Você tem uma camaradagem com um sujeito que você não conhece. Aqui existe uma distância, uma impessoalidade que me incomoda.
Para o Brasil, eu gostaria de levar também um pouco dessa impessoalidade. Da seriedade, principalmente para as pessoas que tratam da coisa pública. Não que não exista corrupção na França.
Outra coisa que eu levaria pra lá é o sentimento de solidariedade, que existe entre os brasileiros que moram fora. Isso eu conheci no tempo que eu morava fora, e vejo muito aqui através das pessoas com as quais convivo. Eles se juntam. Como se dizia, “o brasileiro só se junta na prisão”. Os brasileiros também se juntam no exílio, na diáspora.
Falando em exílio, tem uma história curiosa de Essa moça tá diferente, a sua música mais conhecida na França.
É. A coisa de trabalho (N.R.: na Itália, onde Chico estava em exílio político, em 1968) estava só piorando e o que me salvou foi uma gravadora, a Polygram, pois minha antiga se desinteressou. A Polygram me contratou e me deu um adiantamento. E consegui ficar na Itália um pouco melhor. Mas eu tinha que gravar o disco lá. Eu gravei tudo num gravador pequenininho. Um produtor pegou essas músicas e levou para o Brasil, onde o César Camargo Mariano escreveu os arranjos. Esses arranjos chegaram de volta na Itália e eu botei minha voz em cima, sem que falasse com o César Camargo. Falar por telefone era muito complicado e caro. Então foi feito assim o disco. É um disco complicado esse.

Você acabou de citar o
Le Monde. Para nós, que trabalhamos com comunicação, sempre existiu uma crítica pesada contra os veículos de massa no Brasil. Você acha que existe um plano cruel para imbecilizar o brasileiro?
Não, não acredito em nenhuma teoria conspiratória e nem sou paranoico. Agora, aí é a questão do ovo e da galinha. Você não sabe exatamente. Os meios de comunicação vão dizer que a culpa é da população, que quer ver esses programas. Bom, a TV Globo está instalada no Brasil desde os anos 60. O fato de a Globo ser tão poderosa, isso sim eu acho nocivo. Não se trata de monopólio, não estou querendo que fechem a Globo. E a Globo levanta essa possibilidade comparando o governo Lula ao governo Chavez. Esse exagero.

Você acha que a mídia ataca o Lula injustamente?
Nem sempre é injusto, não há uma caça às bruxas. Mas há uma má vontade com o governo Lula que não existia no governo anterior.
E o que você acha da entrevista recente do Caetano Veloso, onde ele falou mal do Lula e depois acabou sendo desautorizado pela própria mãe?
Nossas mães são muito mais lulistas que nós mesmos. Mas não sou do PT, nunca fui ligado ao PT. Ligado de certa forma, sim, pois conheço o Lula mesmo antes de existir o PT, na época do movimento metalúrgico, das primeiras greves. Naquela época, nós tínhamos uma participação política muito mais firme e necessária do que hoje. Eu confesso, vou votar na Dilma porque é a candidata do Lula e eu gosto do Lula. Mas, a Dilma ou o Serra, não haveria muita diferença.
O que você tem escutado?
Eu raramente paro para ouvir música. Já estou impregnado de tanta música que eu acho que não entra mais nada. Na verdade, quando estou doente eu ouço. Inclusive ouvi o disco do Terça Feira Trio, do Fernando do Cavaco, e gostei. Nunca tinha visto ou ouvido formação assim. Tem ao mesmo tempo muita delicadeza e senso de humor.
A música francesa te influenciou de alguma maneira?
Eu ouvi muito. Nos anos 50, quando comecei a ouvir muita música, as rádios tocavam de tudo. Muita música brasileira, americana, francesa, italiana, boleros latino americanos. Minha mãe tinha loucura por Edith Piaf e não sei dizer se Piaf me influenciou. Mas ouvi muito, como ouvi Aznavour.
O que me tocou muito foi Jacques Brel. Eu tinha uma tia que morou a vida inteira em Paris. Ela me mandou um disquinho azul, um compacto duplo com Ne me quitte pas, La valse à mille temps, quatro canções. E eu ouvia aquilo adoidado. Foi pouco antes da bossa nova, que me conquistou para a música e me fez tocar violão. As letras dele ficaram marcadas para mim.
Eu encontrei o Jacques Brel depois, no Brasil. Estava gravando Carolina e ele apareceu no estúdio, junto com meu editor. Eu fiquei meio besta, não acreditei que era ele. Aí eu fui falar pra ele essa história, que eu o conhecia desde aquele disco. Ele disse “é, faz muito tempo”. Isso deve ter sido 1955 ou 56, esse disquinho dele. Eu o encontrei em 67. Depois, muito mais tarde, eu assisti a L’homme de la mancha, e um dia ele estava no café em frente ao teatro. Eu o vi sentado, olhei pra ele, ele olhou pra mim, mas fiquei sem saber se ele tinha olhado estranhamente ou se me reconheceu. Fiquei sem graça, pois não o queria chatear. Ele estava ali sozinho, não queria aborrecer. Mas ele foi uma figuraça. Eu gostava muito das canções dele. Conhecia todas.
Falando de encontros geniais, você tem uma foto com o Bob Marley. Como foi essa história?
Foi futebol. Ele foi ao Brasil quando uma gravadora chamada Ariola se estabeleceu lá e contratou uma porção de artistas brasileiros, inclusive eu, e deram uma festa de fundação. O Bob Marley foi lá. Não me lembro se houve show, não me lembro de nada. Só lembro desse futebol. Eu já tinha um campinho e disseram “vamos fazer algo lá para a gravadora”. Bater uma bola, fazer um churrasco, o Bob Marley queria jogar. E jogamos, armamos um time de brasileiros e ele com os músicos. Corriam à beça.

Vocês fumaram um baseado juntos?
Não. Dessa vez eu não fumei.

E essa sua migração para escritor, isso é encarado como um momento da sua vida, já era um objetivo?
Isso não é atual. De vinte anos pra cá eu escrevi quatro romances e não deixei de fazer música. Tenho conseguido alternar os dois fazeres, sem que um interfira no outro.
Eu comecei a tentar escrever o meu primeiro livro porque vinha de um ano de seca. Eu não fazia música, tive a impressão que não iria mais fazer, então vamos tentar outra coisa. E foi bom, de alguma forma me alimentou. Eu terminei o livro e fiquei com vontade de voltar à musica. Fiquei com tesão, e o disco seguinte era todo uma declaração de amor à música. Começava com Paratodos, que é uma homenagem à minha genealogia musical. E tinha aquele samba (cantarola) “pensou, que eu não vinha mais, pensou”. Eu voltei pra música, era uma alegria. Agora que terminei de escrever um livro já faz um ano, minha vontade é de escrever música. Demora, é complicado. Porque você não sai de um e vai direto para outro. Você meio que esquece, tem um tempo de aprendizado e um tempo de desaprendizado, para a música não ficar contaminada pela literatura. Então eu reaprendo a tocar violão, praticamente. Eu fiquei um tempão sem tocar, mas isso é bom. Quando vem, vem fresco. É uma continuação do que estava fazendo antes. Isso é bom para as duas coisas. Para a literatura e para a música.
Tanto em Estorvo quanto em Leite derramado o leitor tem uma certa dificuldade em separar o real do imaginário. Você, como seus personagens, derrapa entre essas duas realidades?

Eu? O tempo todo, agora mesmo eu não sei se você esta aí ou se eu estou te imaginando (gargalhadas).
Completamente. Eu fico vivendo aquele personagem o tempo todo. Entrando no pensamento dele. Adquiro coisas dele. Você pode discordar, mas chega uma hora que tem que criar uma empatia ou uma simpatia. Você cria uma identificação. E alguma coisa no gene é roubado mesmo de mim, algumas situações, um certo desconforto, não saber bem se você é real, se você está vivendo ou sonhando aquilo. Por exemplo, agora que ganhamos de 10 a 1 (referência à pelada que jogamos três dias antes), eu saí da quadra e falei: “acho que eu sonhei. Não é possível que tenha acontecido” (risos).
Você é fanático por futebol?
Não sou fanático por nada. Mas eu tenho muito prazer em jogar futebol. Em assistir ao bom futebol, independentemente de ser o meu time. Quando é o meu time jogando bem, é melhor ainda, pois eu consigo torcer. Agora mesmo, no Brasil, tinha os jogos do Santos.
Mas eu vou menos aos estádios. Eu não me incomodo de andar na rua, mas quando você vai a alguns lugares, tem que estar com o cabelo penteado, tem que estar preparado para dar entrevistas. Aqui, eu estou dando a minha última (risos). Aqui, é exclusiva. Fiz pra Brazuca e mais ninguém. Eu quero ver o pessoal jogar bola. Então eu vejo na televisão. E quando não estou escrevendo, aí eu vejo bastante.

É verdade que um dia o Pelé ligou na sua casa, lamentando os escândalos políticos no Brasil, e disse “é, Chico, como diz aquela música sua: ‘se gritar pega ladrão, não fica um meu irmão’”?
É verdade (risos). Eu falei “legal, Pelé, mas essa música não é minha”. O Pelé é uma grande figura. Nós gravamos um programa juntos. Brincamos muito. Conheci o Pelé quando eu fazia televisão em São Paulo, na TV Record, e me mudei para o Rio. Os artistas eram hospedados no Hotel Danúbio, em São Paulo. O mesmo onde o Santos se concentrava. Então, eu conheci o Pelé no hotel. E sempre que a gente se encontra é igual, porque eu só quero falar de futebol e ele só quer saber de música. Ele adora fazer música, adora cantar, adora compor. Por ele, o Pelé seria compositor.
E você, trocaria o seu passado de compositor por um de jogador?

Trocaria, mas por um bom jogador, que pudesse participar da Copa do Mundo. Um pacote completo. Um jogador mais ou menos, aí não.

Você ainda pretende pendurar as chuteiras aos 78 anos, como afirmou?
Não. Já prorroguei. Tava muito cedo. Agora, eu deixei em aberto. Podendo, vou até os 95 (risos).
O Niemeyer está com 102 anos e continua trabalhando. Aliás, não só trabalhando como ainda continua com uma grande fama de tarado (risos).
Ele me falou isso. Eu fui à festa dele de 90 anos e ele me disse: “o importante é trabalhar e ó (fez sinal com a mão, referente a transar)”. Aí eu falei “é mesmo?” e ele respondeu “é mesmo”.
Falando nisso, o Vinícius foi casado nove vezes. Você acha a paixão essencial para a criação?
Sem dúvida. Quando a gente começa – isso é um caso pessoal, não dá pra generalizar – faz música um pouco para arranjar mulher. E hoje em dia você inventa amor para fazer música. Se não tiver uma paixão, você inventa uma, para a partir daí ficar eufórico, ou sofrer. Aí o Vinícius disse muito bem, né? “É melhor ser alegre que ser triste… mas pra fazer um samba com beleza, é preciso um bocado de tristeza, é preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um samba não”.
Quando eu falo que você inventa amores, você também sofre por eles. “E a moça da farmácia? Ela foi embora! Elle est partie en vacances, monsieur!”. E você não vai vê-la nunca mais. Dá uma solidão. Eu estou fazendo uma caricatura, mas essas coisas acontecem. Você se encanta com uma pessoa que você viu na televisão, daí você cria uma história e você sofre. E fica feliz e escreve músicas.
Pra finalizar. Se você fosse escrever uma carta para o seu caro amigo hoje, o que você diria?
Volta, que as coisas estão melhorando!
MAIS
A entrevista foi publicada originalmente na revista Brazuca, uma publicação bilíngue sobre cultura brasileira que circula em Paris e Bruxelas. A partir de 3 de maio, a degravação completa estará disponível no site de Brazuca. Também lá, é possível baixar em pdf, desde já, a edição completa de março-abril (inclusive com as fotos de Chico…)
Daniel Cariello, editor de Brazuca e co-autor da entrevista, é colaborador regular da Biblioteca Diplô /Outras Palavras. Escreve a coluna Chéri à Paris, uma crônica semanal que vê a cidade com olhar brasileiro. Os textos publicados entre março de 2008 e março de 2009 podem ser acessados aqui. A reestreia, em que Daniel fala sobre a entrevista com Chico, aqui.
Thiago Araújo é diretor de Brazuca.

sábado, 31 de julho de 2010

  A Edição ao lado é de 1989

                          (Nº129 - Ano XI - 1989)

1977 – Começa a circular a revista Leia Livros, em São Paulo, por iniciativa do editor Caio Graco Prado, da Editora Brasiliense. A revista deixa de circular em 1990.

Eu tinha uma coleção de LEIA, mas me foi usurpada por João Ubaldo Ribeiro, deixei algumas caixas minhas com alguns livros guardados na Biblioteca de Itaparica, algum tempo depois voltei para pegar e só achei as dos livros, a outra com a coleção de Leia João tinha carregado com algumas coisas suas que estavam na mesma sala, disse-me Bartola fiel escudeiro de João, pedi através de Bartola que me devolvesse, ele informou que não tinha mais condições de devolver, deve ter se apaixonado pela coleção, dei uma de namorado traído depois deixei prá lá, estava em boas mãos a coleção. 

quinta-feira, 29 de julho de 2010

O Livreiro do Largo da Carioca

Escrever bem, contar bem uma história, ser mágico com as palavras, traduzir os sentimentos humanos, o pó da história, os objetos, o tempo...bem como tocar bem uma guitarra, fazê-la falar, tocar um bandolim, um sax alto, dedilhar um violão sem dá tempo para a respiração, compor uma música, pintar um quadro, fazer uma instalação, escrever uma peça. São atos próprios de seres imagináveis, estes seres com e sem nomes, conhecidos e anônimos, seres extra classes. Escrever, dizem os entediados e o pessoal da Taradinha*, é um esforço incomum, é um parto diz outros, um exercício intelectual para poucos, só os letrados deveriam escrever, orgulha-se a academia. Na verdade eles, os que falam isso, são pessoas que fazem estátuas de parque dormirem, com seus textos lentos, carregados de antanáclases tiradas de outros textos, sem inventividade alguma, criação nula, sem nenhuma esperança que algo alí mude, sem viscerazitas, enfim, sem paixão, frio e taciturno como geladeira de IML. Romancear é igual a tocar um instrumento ou compor, pouco importa se vc é da academia, o importante é sua alma, alma que não seja Andrade, pois aí é covardia, alma de Vinicius, alma de Dr Rosa, que nasceu médico e se transformou em escritor, alma Neruda que nasceu Neftáli antes de versar algo para alguma dona, alma Alcides com o seu Azul se rasga rubro, alma dos que são contra a mediocridade, o modismo, o ter e não ser, o consumismo e a falta de humanidade.
A vida prega peças, e é uma verdade. Um grande amigo meu levou anos gestando um livro, eu já estava sem esperanças em ver este livro editado, sempre o perguntava como estava indo, se havia progredido, ele sempre empalmava, saía pela tangente, escamoteava de um lado e de outro e mudava de assunto. Eu ficava intrigado, um cara como ele poderia escrever um livro por dia, conhecimento léxico não lhe faltava, experiência de vida muito menos, leitura também não, era um leitor voraz de tudo que existia no mundo, certa vez eu o ví com mais de dez livros na mão, comprados em sebo, eu o perguntei, pois estava na casa dele no Rio, prá que tanto livro assim, as estantes estão abarrotadas, ele me falou num estalo no ar de ser gênio sem dizer que o é " É meu caro tanto livro e tão pouco tempo.." Como ele era um garoto de mais de cinquenta, fiquei com aquilo na cabeça, lembrei de "Navegar é preciso, viver não é preciso" de Pessoa, onde se faz uma anlogia entre a necessidade e a precisão. De que tempo ele falaria, do tempo da correria do dia a dia ou do tempo físico que lhe restava, o tempo da morte, aquela frase me corou e corta até hoje, como aço frio das lâminas das meninas do Mimosa. Ele carregava livro para casa como quem vai montar uma biblioteca ou uma livraria, os livreiros do Largo da Carioca sentiam inveja dele, como conseguia ler todos aqueles livros alí comprados. Era um bom dublê de advogado e funcionário público, dublê de fotografo, mas a sua principal tarefa na terra ele escorregava como rampa de maré limada, ser escritor.
Depois de algum tempo, ficando anos na incubadora, ele nos regalou com um tal "Cartografia da Memória**", desconfiei de início, achei que estava nos passando a perna, a capa do livro muito bonita, com uma fotografia sua, mas o livro era fino, umas duzentas páginas, mas como é que um homem leva mais de trinta anos escrevendo um livro e escreve só isso. Me decepcionei, ele me entregou um exemplar e me fez uma dedicatória, eu como bom baiano e amigo elogiei a capa, coloquei o livro na sacola e fui embora, depois de uns vinhos na casa dele.
Começei a ler o livro, de cara começei a chorar, depois rir, depois chorar, rir, chorar e não parei mais. Fantástico, abraçava o livro, beijava-o, cheirava-o, xingava o meliante que demorou tanto tempo para nos brindar com aquilo, eu só perguntava porque não veio antes, corno, um dos melhores livros que já lí em minha vida, que escrita, vá escrever bem assim nos raios que o parta, como esse cara teve a ousadia de nos privar, como seus escravos, de uma delícia desta. Cartografia da Memória está entre os cem melhores livros que eu já lí em toda minha vida. Bendita duzentas páginas. Obrigado Manú.

* Termo criado por mim e Cid para alcunhar uns falsos literatos que vivem a sombra de grades escritores como Guimarães Rosa e Machado de Assis, nem tem  uma idéia original, os pobres vivem de cópia.
 ** Cartografia da Memória, Emanuel Castro Oliveira - Editora Sete Letras, RJ.




 

No divã virtual com a literatura!


Esse negócio de “postar” é um luxo… Um luxo dos que têm tempo, assunto e vontade de se comunicar.
Tenho, por enquanto, muito tempo, muito assunto, mas pouca vontade de me comunicar.
Na verdade até gosto de me comunicar, mas não para pessoas que não fazem a mínima idéia de quem sou eu e que também não faço a mínima idéia de quem são. Novos tempos... coisas da internet!
Com tantos milhares de sites no ar, falando sobre coisas tão parecidas, só me alenta o fato de saber que se você está me lendo agora, deve ter alguma coisa em comum com o motivo deste blog. E afinal de contas, ele é sobre o que?
Creio que nem o idealizador deve saber ao certo as motivações que o levaram a criar o primeiro post, mas como confio no gosto dele, vou começar a falar o que acho da literatura. Sigo o parâmetro do autor, vamos ver no que dá...
A literatura deixou de ser uma matéria de escola e começou a ser um prazer para mim no momento em que soltei a mão de meus professores e resolvi caminhar com minhas próprias pernas, escolher meus próprios livros, interpretar de minha própria maneira o que lia. Foi nesta liberdade que encontrei o prazer na literatura. Até hoje estamos juntos e é com ela que encontro um alento sem fim para meus problemas, um diálogo fantástico para minhas angústias e um espaço ilimitado para ver até onde vai a criação humana.
Do jeito que falo, parece que a literatura me serve como divã... e não é que só agora, escrevendo sobre o tema, depois de tantos anos me dou conta disto? Acho que é o primeiro momento em que “discuto a relação” com a literatura. Achei que isto era coisa para casais...
Bem, agora vou dar um tempo por aqui... vou tomar fôlego na FLIP, por uns quinze dias, meditar mais sobre essa relação passional entre mim, a literatura (como idéia), os livros (como objetos de adoração), os autores (como ideais a serem invejados – ou não...) e este blog maluco.
Grande abraço do Homem da Lei!

O Homem da Lei encantado com Roberto Arlt

Uma das melhores bibliotecas públicas, entre poucas que existem na Bahia, é a Juracy Magalhães Júnior, que era uma biblioteca particular da fundação do mesmo nome e que pertenceu ao General Juracy Magalhães, pai do Júnior, assassinado tragicamente em uma emboscada, eles colocaram o nome do filho na fundação. Nela existe até a mesa em jacarandá, que era do então governador, do seu escritório particular e sua extensa biblioteca com volumes raros e livros presenteados de autores também famosos como Jorge Amado e João Ubaldo, filho da cidade.
Foi alí, que tive o prazer nos anos que residi, de travar uma bela pela com centenas de livros, me aprofundei nos escritores latino-americanos, que sempre gostei, fui de Borges e Sábato a Lezzama e Scorza. Realmente poucos lugares no mundo tem nincho ficcional como a América Latina.
Num certo dia, entediado de corrigir provas dos alunos, era um Deus nos acuda corrigir prova, pois eu caprichava muito na elaboração, que fazia com os alunos escrevessem, daí a revolta na hora de corrigir, atravesei a rua, morava do outro lado, e adentrei na biblioteca, Moisés com cara de sono e Bartola atendendo uns poucos estudantes, eram as únicas almas vivas daquele prédio, um silêncio ensurdecedor, só o som do vento e das folhas no jardim. Entrei e fui para o fundo, na sala de romances, que eram divididos por regiões e línguas. Comecei a tatear e olhar se garimpava alguma novidade, estava numa fase literária latinoamericana, lia qualquer coisa que chegasse em minhas mãos, mesmo em espanhol, passei pelo Jogo da Amarelinha de Cortázar e logo adiante ví um título, "Armadilha Mortal autor Roberto Arlt", só o conhecia de nome, famoso que era, mas nunca me dei ao desfrute de saborear tal engenhosa escrita, gostava muito de contos policiais, gosto até hoje, dizem que é literatura menor, estou pouco ligando pros críticos, eu gosto da boa escrita seja ela qual for, inclusive se foi escrito em papel higiênico, prá mim não importa, o importante é o gênio da lâmpada e não a lâmpada. Peguei-o com cuidado, cherei, adoro cheirar livros, se tiver cheiro de canto e ácaros melhor ainda, e não me contive da alegria, eram contos policiais, um dos gêneros que mais aprecio e gosto de escrever. Me retirei para o meu canto habitue, rastei a cadeira, estiquei as pernas e só parei na hora que Bartola me chamou dizendo que ia fechar a biblioteca, não tinha chegado ainda no final do livro, "Bartola eu vou levar ele" disse, sai com ele embaixo do braço, não queria voltar prá casa prá ouvir lenga-lenga de mulher, "onde você estava? Na escola foi que não foi. Não tem leite, não tem pão, sua filha chorando, êta vida miserável...", fui pro jardim dos veranistas, Itaparica é assim, lugar prá vc ficar em paz é o que não falta. Fiquei em companhia de Arlt até perto das seis horas da tarde, pouco antes de escurecer, me lembro de alguns contos como "A vingança do macaco" e "O enigma das três cartas" se não me engano.
Mas porque eu estou falando isso tudo, é que hoje o Homem da Lei me telefonou lá de Petrolina onde mora e disse que estava perplexo com uma descoberta, ele me perguntou se eu conhecia Roberto Arlt, eu disse que sim, que era um escritor argentino muito bom eu disse, ele me respondeu, bom uma zorra, o cara é demais, estou extasiado com a escrita dele, já comprei pela estante virtual uns quatro livros do cara. É meus caros, a descoberta de uma boa escrita é melhor que um gozo facial, é algo indescritível, foi assim quando descobri Knut Hanssun com seu Fome, Fante com Pergunte ao Pó, Walt Witman com seu Toque, Faulkner com o Som e a Fúria, Gorki com A Mãe, Drummond com sua Rosa do Povo entre outros.