quinta-feira, 29 de julho de 2010

O Livreiro do Largo da Carioca

Escrever bem, contar bem uma história, ser mágico com as palavras, traduzir os sentimentos humanos, o pó da história, os objetos, o tempo...bem como tocar bem uma guitarra, fazê-la falar, tocar um bandolim, um sax alto, dedilhar um violão sem dá tempo para a respiração, compor uma música, pintar um quadro, fazer uma instalação, escrever uma peça. São atos próprios de seres imagináveis, estes seres com e sem nomes, conhecidos e anônimos, seres extra classes. Escrever, dizem os entediados e o pessoal da Taradinha*, é um esforço incomum, é um parto diz outros, um exercício intelectual para poucos, só os letrados deveriam escrever, orgulha-se a academia. Na verdade eles, os que falam isso, são pessoas que fazem estátuas de parque dormirem, com seus textos lentos, carregados de antanáclases tiradas de outros textos, sem inventividade alguma, criação nula, sem nenhuma esperança que algo alí mude, sem viscerazitas, enfim, sem paixão, frio e taciturno como geladeira de IML. Romancear é igual a tocar um instrumento ou compor, pouco importa se vc é da academia, o importante é sua alma, alma que não seja Andrade, pois aí é covardia, alma de Vinicius, alma de Dr Rosa, que nasceu médico e se transformou em escritor, alma Neruda que nasceu Neftáli antes de versar algo para alguma dona, alma Alcides com o seu Azul se rasga rubro, alma dos que são contra a mediocridade, o modismo, o ter e não ser, o consumismo e a falta de humanidade.
A vida prega peças, e é uma verdade. Um grande amigo meu levou anos gestando um livro, eu já estava sem esperanças em ver este livro editado, sempre o perguntava como estava indo, se havia progredido, ele sempre empalmava, saía pela tangente, escamoteava de um lado e de outro e mudava de assunto. Eu ficava intrigado, um cara como ele poderia escrever um livro por dia, conhecimento léxico não lhe faltava, experiência de vida muito menos, leitura também não, era um leitor voraz de tudo que existia no mundo, certa vez eu o ví com mais de dez livros na mão, comprados em sebo, eu o perguntei, pois estava na casa dele no Rio, prá que tanto livro assim, as estantes estão abarrotadas, ele me falou num estalo no ar de ser gênio sem dizer que o é " É meu caro tanto livro e tão pouco tempo.." Como ele era um garoto de mais de cinquenta, fiquei com aquilo na cabeça, lembrei de "Navegar é preciso, viver não é preciso" de Pessoa, onde se faz uma anlogia entre a necessidade e a precisão. De que tempo ele falaria, do tempo da correria do dia a dia ou do tempo físico que lhe restava, o tempo da morte, aquela frase me corou e corta até hoje, como aço frio das lâminas das meninas do Mimosa. Ele carregava livro para casa como quem vai montar uma biblioteca ou uma livraria, os livreiros do Largo da Carioca sentiam inveja dele, como conseguia ler todos aqueles livros alí comprados. Era um bom dublê de advogado e funcionário público, dublê de fotografo, mas a sua principal tarefa na terra ele escorregava como rampa de maré limada, ser escritor.
Depois de algum tempo, ficando anos na incubadora, ele nos regalou com um tal "Cartografia da Memória**", desconfiei de início, achei que estava nos passando a perna, a capa do livro muito bonita, com uma fotografia sua, mas o livro era fino, umas duzentas páginas, mas como é que um homem leva mais de trinta anos escrevendo um livro e escreve só isso. Me decepcionei, ele me entregou um exemplar e me fez uma dedicatória, eu como bom baiano e amigo elogiei a capa, coloquei o livro na sacola e fui embora, depois de uns vinhos na casa dele.
Começei a ler o livro, de cara começei a chorar, depois rir, depois chorar, rir, chorar e não parei mais. Fantástico, abraçava o livro, beijava-o, cheirava-o, xingava o meliante que demorou tanto tempo para nos brindar com aquilo, eu só perguntava porque não veio antes, corno, um dos melhores livros que já lí em minha vida, que escrita, vá escrever bem assim nos raios que o parta, como esse cara teve a ousadia de nos privar, como seus escravos, de uma delícia desta. Cartografia da Memória está entre os cem melhores livros que eu já lí em toda minha vida. Bendita duzentas páginas. Obrigado Manú.

* Termo criado por mim e Cid para alcunhar uns falsos literatos que vivem a sombra de grades escritores como Guimarães Rosa e Machado de Assis, nem tem  uma idéia original, os pobres vivem de cópia.
 ** Cartografia da Memória, Emanuel Castro Oliveira - Editora Sete Letras, RJ.




 

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