terça-feira, 2 de novembro de 2010

A morte sem deuses

No Antigo Egito, o deus solar Ra era o governante dos céus, a contraparte celestial do Faraó; muito mais ao gosto popular, porém, era Osíris; originalmente uma divindade local de Mendes, no delta, seu poder se espalhou após o fim do Antigo Reinado, até que ele se tornou o deus mais popular do Egito, em parte devido ao fato de ser ele o deus dos mortos, o "deus morto" que assegurava a seus seguidores a vida eterna - como Jesus viria a fazer, 1.400 anos mais tarde.

Para os antigos nórdicos, a eternidade seria passada no salão de banquetes de Valhalla, para onde eram levados pelas Valquírias após serem mortos em batalha e onde permaneceriam até que viesse o fim dos tempos, quando auxiliariam Odin e os demais deuses durante os eventos de Ragnarok, que incluiriam vários desastres naturais e outras catástrofes, sendo o mundo, ao final, submergido em água - apenas para reemergir renovado e fértil, para ser repopulado pelos sobreviventes humanos e pelos deuses renascidos.

Na tradição chinesa, na africana e também na dos índios norte-americanos, práticas rituais de veneração dos ancestrais se baseiam na crença de que os membros mortos da família não apenas continuam a existir - e a ter necessidades muito semelhantes às nossas (o que, claro, lembra-me de Nosso Lar), mas possuem interesse nos assuntos dos vivos, assim como a capacidade de influenciar suas ações (o que demonstra, mais uma vez, quão pouco tem de originalidade as várias versões do Cristianismo).

De qualquer modo, não há dúvida de que é imensa a necessidade psicológica da espécie humana de acreditar que sua existência - diversamente de tudo o mais que vemos ao nosso redor - não terá fim. Todo o aparato mitológico/teológico gerado por esta "tentação transcendental", visto por este prisma, não é mais do que uma resposta desesperada, surgida da recusa em encarar a inevitabilidade da morte. Mas se esta necessidade é tão forte assim, o que fazer quando se chega à conclusão de que nenhuma destas mitologias/teologias tem mais fundamento do que qualquer outra? Como viver tendo a certeza de que o fim realmente chegará?

Pessoalmente, a morte nunca me assustou; muito mais aterradora seria a possibilidade de viver com alguma limitação severa a que não estou acostumado (cegueira, paralisia, Alzheimer etc.). Na verdade, minha perspectiva é diametralmente oposta à daqueles que buscam um propósito cósmico/divino para a vida humana: é precisamente a certeza da morte (da morte "de verdade") que torna a vida tão preciosa. Como diz Katsumoto (personagem de Ken Watanabe no filme O Último Samurai), "como os brotos [da cerejeira], nós estamos todos morrendo [desde o momento em que nascemos]"; por isso, é preciso "viver a vida a cada respiração".

Num mundo sem deuses que nos assegurem vida eterna, muito mais dolorosa do que a própria morte é a morte de outros, daqueles a quem amamos. Neste Dia dos Mortos, fui rever as minhas. Com isto, quero dizer não apenas que "desencavei" fotografias, mas principalmente que fui ao local onde estão enterradas para evocar lembranças, para renovar a dor como forma de mostrar a mim mesmo o quanto elas foram importantes. Sua morte não me ensinou ainda lição alguma, a não ser talvez por mostrar de modo chocante a fragilidade da nossa existência, e a importância de cuidarmos uns dos outros enquanto temos a chance. De resto, apenas o vazio que elas deixaram e o esforço por equilibrar-me entre a melancolia - a que não se pode dar tanta chance - e o olvido - tão tentador em meio às obrigações cotidianas. E nem mesmo os deuses poderiam tornar mais fácil este equilíbrio.

SÓLO LA MUERTE

Hay cementerios solos,
tumbas llenas de huesos sin sonido,
el corazón pasando un túnel
oscuro, oscuro, oscuro,
como un naufragio hacia adentro nos morimos,
como ahogarnos en el corazón,
como irnos cayendo desde la piel al alma.

Hay cadáveres,
hay pies de pegajosa losa fría,
hay la muerte en los huesos,
como un sonido puro,
como un ladrido sin perro,
saliendo de ciertas campanas, de ciertas tumbas,
creciendo en la humedad como el llanto o la lluvia.

Yo veo, solo, a veces,
ataúdes a vela
zarpar con difuntos pálidos, con mujeres de trenzas muertas,
con panaderos blancos como ángeles,
con niñas pensativas casadas con notarios,
ataúdes subiendo el río vertical de los muertos,
el río morado,
hacia arriba, con las velas hinchadas por el sonido de la muerte,
hinchadas por el sonido silencioso de la muerte.

A lo sonoro llega la muerte
como un zapato sin pie, como un traje sin hombre,
llega a golpear con un anillo sin piedra y sin dedo,
llega a gritar sin boca, sin lengua, sin garganta.
Sin embargo sus pasos suenan
y su vestido suena, callado, como un árbol.

Yo no sé, yo conozco poco, yo apenas veo,
pero creo que su canto tiene color de violetas húmedas,
de violetas acostumbradas a la tierra
porque la cara de la muerte es verde,
y la mirada de la muerte es verde,
con la aguda humedad de una hoja de violeta
y su grave color de invierno exasperado.

Pero la muerte va también por el mundo vestida de escoba,
lame el suelo buscando difuntos,
la muerte está en la escoba,
es la lengua de la muerte buscando muertos,
es la aguja de la muerte buscando hilo.
La muerte está en los catres:
en los colchones lentos, en las frazadas negras
vive tendida, y de repente sopla:
sopla un sonido oscuro que hincha sábanas,
y hay camas navegando a un puerto
en donde está esperando, vestida de almirante.

Pablo Neruda