domingo, 19 de dezembro de 2010

Mea Culpa, ou O Inferno Somos Nós

Não tenho dúvida de que todos os ateus - assim como todos os cães - merecem o Céu (afinal, precisamente por não acharmos que ele exista com inicial maiúscula, fazemos o bem sem esperar recompensa). Infelizmente (para mim, hoje), o universo é muito mais "governado" pelo acaso do que a maioria de nós gosta de pensar (e por isso sei que noutro dia a fortuna me sorrirá). Assim, embora tenha precisado percorrer mais de quinhentos quilômetros do meu paraíso à beira-rio para o purgatório que é Salvador, bastou um evento fortuito para me lançar, em menos de um minuto, do confortável círculo da classe média brasileira para o que Dante não previu ser o décimo círculo do Inferno: o da ineficiência do Estado no Brasil.

Claro, não faltam em Salvador motoristas irresponsáveis, fazendo a todo momento manobras arriscadas, vivendo da sorte (e calhou de, no dia de um deles dar azar, esse azar ser meu), mas também isto pode ser atribuído à ineficiência do Estado, pois num lugar em que a Polícia e o Judiciário realmente funcionassem, as pessoas certamente seriam mais cuidadosas com seus atos, por temer as consequências (é esta, afinal, como já implicado, a mentalidade da maioria).

A partir do momento em que o beócio saiu da garagem de seu prédio sem olhar e atingiu meu carro, eu já sabia que o dia estava perdido - e talvez todo o final de semana. Claro, eu e minha esposa ficamos admirados quando duas viaturas policiais passaram pelo local e simplesmente ignoraram o acidente. Porém somente ficamos realmente estupefatos quando descobrimos que não há polícia técnica em Salvador - a menos que o acidente resulte em danos corporais a alguém; e ainda mais quando afinal conseguimos fazer o dito beócio nos acompanhar à delegacia para registrar a ocorrência e, lá chegando, vimos dezenas de viaturas paradas no pátio.

Refletindo melhor, porém, concluí que faz sentido. Afinal, a perícia somente teria utilidade num processo judicial; no entanto, sabendo que os processos judiciais na Justiça Comum baiana são eternos (eu mesmo tenho uma liminar deferida há mais de ano, sem esperança de cumprimento!) e que, portanto, nenhuma utilidade terá a perícia, para que perder tempo com ela? Como disse, faz sentido... Assim, após esperarmos em vão por cerca de duas horas, troquei o pneu cortado no impacto e arrastei o carro, com direção torta, à bendita delegacia, cujo único funcionário era um velhinho impaciente que não se animava sequer a criar problemas por falta de documentação, provavelmente para não ter mais trabalho. E cada vez chegavam mais pessoas para preencher aquela papelada inútil...

Deixando de lado meu dia de inferno pessoal, como podemos suportar o inferno como se fosse normal, como se pudéssemos passar toda a vida numa redoma com condicionador de ar para manter longe o calor? E isso quando já temos, desde 1988, nosso próprio projeto de paraíso na Terra, em forma de Constituição. Ainda assim, se o Estado não nos proporciona educação, saúde, moradia, segurança, lazer, previdência etc., nós criamos nossa redoma com colégios e faculdades particulares, planos de saúde e de previdência privada, condomínios fechados. Se o trânsito também é infernal, nós nos esprememos em redomas ainda menores, construindo prédios onde podemos ir de casa ao trabalho apenas passando de um andar para outro, ou condomínios onde tudo se concentra (mercado, escola, academia, consultórios, escritórios). Se o Estado tampouco cuida de erradicar a pobreza e de reduzir desigualdades, organizamos redes privadas de assistência aos carentes e nos sentimos bem com isso - como de fato deveríamos! Mas assim vamos vivendo e esquecendo do inferno que nos rodeia. Até que por acaso caímos nele, damos de cara com o Capeta e percebemos quão impotentes somos diante de tão indolente e incapaz Leviatã.

Resumindo o mea culpa, no fundo somos todos culpados, por ação e, principalmente, por omissão, pela perpetuação desse inferno...

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Nihil novi sub sole

Nihil novi sub sole


Dong zhi, Yule, Yaldā, Saturnalia, Kračún, Christmas, Natal. Parece que nada há mesmo de novo sob o Sol, ou em torno dele. Há milênios celebramos, na noite mais longa do ano (ao menos para nossos ancestrais no hemisfério norte, como o Inti Raymi dos Incas, celebrado em junho, ainda nos lembra), o início do renascimento do Sol e, com ele, o retorno do verde, da vida, da fertilidade. Não fosse a inclinação do imaginário eixo terrestre, não teríamos as quatro estações; pouca diferença faria o movimento de translação da Terra em sua órbita elíptica ao redor do Sol. Sem o contraste do rigor invernal com a exuberância primaveril, teriam nossos pré-históricos antepassados percebido a importância do Sol para a sua sobrevivência?
Certamente não teríamos a Árvore de Natal para nos lembrar da persistência da vida, mesmo sob as condições mais severas. Mas nem por isto nossos antepassados deixariam de imaginar que eram deuses os gigantes que viam vagando pelos céus, nem deixariam de associá-los às coisas cotidianas, fossem aquelas externas (a guerra, as tempestades), internas (o amor, a beleza, a sabedoria) ou mesmo metafísicas (como a passagem do tempo). Provavelmente ainda teríamos nossa semana de sete dias – e talvez o mais importante deles ainda fosse associado ao Sol, o maior dos deuses antigos. Uma coisa, porém, certamente seria diferente: não teríamos o “mistério” da morte e ressurreição de tantos deuses. Apolo, Dioniso, Osíris, Mitra, Jesus. “Nasce um Deus. Outros morrem. A Verdade/ Nem veio nem se foi: o Erro mudou.” Assim começa Fernando Pessoa seu pequenino poema intitulado Natal.
Mas que importa que nome damos ao que há de divino, de sublime, nesta data? Os mitos são apenas o veículo para a verdade: o fato de que nós temos quatro estações, e elas têm reflexo em nossa psicologia. Nós nos acostumamos, desde há milênios, a dividir nossas vidas em ciclos; talvez assim seja mais fácil seguir adiante, e uma das razões para isto é o fato de sabermos que cada inverno, cada contratempo, problema, vicissitude, conflito, revés – tudo vai passar. O Sol voltará a brilhar, a primavera virá, a vida florescerá novamente e tudo será melhor.
Já se observou que as necessidades preenchidas pelos deuses variam de acordo com a sociedade. Em sociedades pequenas e simples, com tecnologia rudimentar, intimidade e solidariedade surgem naturalmente entre seus membros e o papel dos deuses consiste em protegê-los contra as forças da natureza, sobre as quais possuem nenhum controle. Sociedades grandes e complexas, tecnologicamente avançadas, por outro lado, podem prever e controlar, em certa medida, o mundo físico, mas seus membros se ressentem do individualismo, da alienação, da solidão.
É evidente que nós nos distanciamos do significado original da celebração do solstício de inverno, já que nossa sobrevivência não está mais tão intrinsecamente ligada aos ciclos da natureza. Não mais necessitamos de deuses para nos trazer chuvas, ou boas colheitas, ou fertilidade para os animais e para nós mesmos. Mas se ainda necessitamos deles para satisfazer anseios emocionais e para nos fazer lembrar que as pessoas à nossa volta são seres humanos, que seja este então o significado desta data. Apesar das idealizações românticas, verdadeiro altruísmo, puro, desinteressado, é algo que não existe na natureza – mas talvez seres pensantes, sencientes e sociais como nós possam enfim criar algo de novo sob o Sol.
Compreender os ciclos da vida deveria fazer com que nos preparássemos melhor para o próximo inverno – o que nem sempre acontece. Neste momento, contudo, o que importa é celebrar a renovação, o renascimento interior – e, quem sabe, contribuir para uma renovação exterior também, tornando o mundo um pouco melhor no novo ciclo que se inicia. Afinal, como cantaram os Beatles, é um tolo quem se acha o máximo por fazer do mundo um lugar mais frio.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

A morte sem deuses

No Antigo Egito, o deus solar Ra era o governante dos céus, a contraparte celestial do Faraó; muito mais ao gosto popular, porém, era Osíris; originalmente uma divindade local de Mendes, no delta, seu poder se espalhou após o fim do Antigo Reinado, até que ele se tornou o deus mais popular do Egito, em parte devido ao fato de ser ele o deus dos mortos, o "deus morto" que assegurava a seus seguidores a vida eterna - como Jesus viria a fazer, 1.400 anos mais tarde.

Para os antigos nórdicos, a eternidade seria passada no salão de banquetes de Valhalla, para onde eram levados pelas Valquírias após serem mortos em batalha e onde permaneceriam até que viesse o fim dos tempos, quando auxiliariam Odin e os demais deuses durante os eventos de Ragnarok, que incluiriam vários desastres naturais e outras catástrofes, sendo o mundo, ao final, submergido em água - apenas para reemergir renovado e fértil, para ser repopulado pelos sobreviventes humanos e pelos deuses renascidos.

Na tradição chinesa, na africana e também na dos índios norte-americanos, práticas rituais de veneração dos ancestrais se baseiam na crença de que os membros mortos da família não apenas continuam a existir - e a ter necessidades muito semelhantes às nossas (o que, claro, lembra-me de Nosso Lar), mas possuem interesse nos assuntos dos vivos, assim como a capacidade de influenciar suas ações (o que demonstra, mais uma vez, quão pouco tem de originalidade as várias versões do Cristianismo).

De qualquer modo, não há dúvida de que é imensa a necessidade psicológica da espécie humana de acreditar que sua existência - diversamente de tudo o mais que vemos ao nosso redor - não terá fim. Todo o aparato mitológico/teológico gerado por esta "tentação transcendental", visto por este prisma, não é mais do que uma resposta desesperada, surgida da recusa em encarar a inevitabilidade da morte. Mas se esta necessidade é tão forte assim, o que fazer quando se chega à conclusão de que nenhuma destas mitologias/teologias tem mais fundamento do que qualquer outra? Como viver tendo a certeza de que o fim realmente chegará?

Pessoalmente, a morte nunca me assustou; muito mais aterradora seria a possibilidade de viver com alguma limitação severa a que não estou acostumado (cegueira, paralisia, Alzheimer etc.). Na verdade, minha perspectiva é diametralmente oposta à daqueles que buscam um propósito cósmico/divino para a vida humana: é precisamente a certeza da morte (da morte "de verdade") que torna a vida tão preciosa. Como diz Katsumoto (personagem de Ken Watanabe no filme O Último Samurai), "como os brotos [da cerejeira], nós estamos todos morrendo [desde o momento em que nascemos]"; por isso, é preciso "viver a vida a cada respiração".

Num mundo sem deuses que nos assegurem vida eterna, muito mais dolorosa do que a própria morte é a morte de outros, daqueles a quem amamos. Neste Dia dos Mortos, fui rever as minhas. Com isto, quero dizer não apenas que "desencavei" fotografias, mas principalmente que fui ao local onde estão enterradas para evocar lembranças, para renovar a dor como forma de mostrar a mim mesmo o quanto elas foram importantes. Sua morte não me ensinou ainda lição alguma, a não ser talvez por mostrar de modo chocante a fragilidade da nossa existência, e a importância de cuidarmos uns dos outros enquanto temos a chance. De resto, apenas o vazio que elas deixaram e o esforço por equilibrar-me entre a melancolia - a que não se pode dar tanta chance - e o olvido - tão tentador em meio às obrigações cotidianas. E nem mesmo os deuses poderiam tornar mais fácil este equilíbrio.

SÓLO LA MUERTE

Hay cementerios solos,
tumbas llenas de huesos sin sonido,
el corazón pasando un túnel
oscuro, oscuro, oscuro,
como un naufragio hacia adentro nos morimos,
como ahogarnos en el corazón,
como irnos cayendo desde la piel al alma.

Hay cadáveres,
hay pies de pegajosa losa fría,
hay la muerte en los huesos,
como un sonido puro,
como un ladrido sin perro,
saliendo de ciertas campanas, de ciertas tumbas,
creciendo en la humedad como el llanto o la lluvia.

Yo veo, solo, a veces,
ataúdes a vela
zarpar con difuntos pálidos, con mujeres de trenzas muertas,
con panaderos blancos como ángeles,
con niñas pensativas casadas con notarios,
ataúdes subiendo el río vertical de los muertos,
el río morado,
hacia arriba, con las velas hinchadas por el sonido de la muerte,
hinchadas por el sonido silencioso de la muerte.

A lo sonoro llega la muerte
como un zapato sin pie, como un traje sin hombre,
llega a golpear con un anillo sin piedra y sin dedo,
llega a gritar sin boca, sin lengua, sin garganta.
Sin embargo sus pasos suenan
y su vestido suena, callado, como un árbol.

Yo no sé, yo conozco poco, yo apenas veo,
pero creo que su canto tiene color de violetas húmedas,
de violetas acostumbradas a la tierra
porque la cara de la muerte es verde,
y la mirada de la muerte es verde,
con la aguda humedad de una hoja de violeta
y su grave color de invierno exasperado.

Pero la muerte va también por el mundo vestida de escoba,
lame el suelo buscando difuntos,
la muerte está en la escoba,
es la lengua de la muerte buscando muertos,
es la aguja de la muerte buscando hilo.
La muerte está en los catres:
en los colchones lentos, en las frazadas negras
vive tendida, y de repente sopla:
sopla un sonido oscuro que hincha sábanas,
y hay camas navegando a un puerto
en donde está esperando, vestida de almirante.

Pablo Neruda

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Poeminha inacabado

a noite é longa
e minhas asas, curtas;
mas enfim alcanço
teu peito, pouso
inevitável
para o meu coração
- pássaro perdido, diluído
na manhã dos teus olhos

terça-feira, 24 de agosto de 2010

“Quem quer viver para sempre?, perguntava a canção do Queen. Esta pergunta retórica e sua resposta óbvia eram o resultado da óbvia resposta a outra pergunta feita alguns versos antes:
O que é esta coisa que constrói nossos sonhos
E no entanto foge de nós?

A vida, claro, é o que constrói nossos sonhos – e então parece fugir por entre nossos dedos impotentes. Qual a conclusão inicial da canção a respeito disso?

Não temos chance.
Tudo está decidido para nós.
Este mundo tem apenas um único doce momento
Reservado para nós.

Mas certamente – já que estamos vivos – nós temos, de fato, uma chance, e uma chance única. Emily Dickinson com razão escreveu: “Que nunca será de novo/ é o que torna a vida tão doce.” Nós estamos fadados a morrer, isto é certo. Todavia, a certeza da morte não é bastante para que tudo esteja decidido. Entre este momento e aquele de nossa morte, ao longo de todos aqueles doces momentos (mesmo os mais duros, ainda assim doces, pelo mero fato de serem únicos e reais; já dizia Pessoa: “O mesmo breve ser da mágoa pesa-me,/ Que, inda que mágoa, é vida.”), nós – e ninguém mais – temos que decidir o que fazer do precioso tempo que temos, muito mais precioso porque sabemos com certeza que acabará, mais cedo ou mais tarde.

Alguns dizem que, não importa quão tarde venha o final, a vida humana ainda é curta demais. Isto não é verdade. Dois milênios atrás, Sêneca já sabia disso: “Não é que nós tenhamos um tempo curto, mas sim que nós desperdiçamos muito dele. A vida é longa o bastante, e nos foi dada em suficientemente generosa medida para permitir a realização das maiores coisas, se a sua totalidade for bem investida. Porém, quando ela é desperdiçada em luxo e descuido, quando não é devotada a uma boa finalidade, forçados afinal pela necessidade última nós percebemos que ela passou e se foi, antes que nós percebêssemos que ela estava passando. Portanto, a vida que recebemos não é curta, mas nós a fazemos assim; nem temos dela falta, mas apenas desperdício. Assim como uma grande riqueza é dilapidada num momento quando chega às mãos de um mau proprietário, ao passo que uma riqueza limitada, se confiada a um bom guardião, aumenta com o uso, assim nossa vida é abundantemente longa para quem a conduz de modo adequado.”

Claro, não importa quão longa ou plena seja uma vida humana, ela eventualmente chega ao fim. Não há escapatória: como diz outra canção, nós somos todos poeira ao vento; se fecharmos nossos olhos apenas por um momento, o momento terá passado; tudo que fazemos desmorona; e nem mesmo a terra e o céu durarão para sempre. Embora nós já não estaremos mais aqui há muito tempo, alguns bilhões de anos no futuro o Sol – e com ele nosso planeta – deixará de existir. É inevitável.

Mas e daí? Susan Ertz observou que “milhões daqueles que anseiam pela eternidade não sabem o que fazer de si mesmos numa tarde chuvosa de domingo.” E isto é precisamente o que não deveria acontecer – o que não pode acontecer: o desperdício desta oportunidade única de estar vivo.

O aspecto que na verdade se revela mais problemático não é a nossa própria morte, mas a perda daqueles que amamos. Contudo, ao reinterpretar os versos iniciais da nossa canção, nós conseguimos atingir sua conclusão final e nossa única solução possível: se não há tempo para nós, senão agora; se não há lugar para nós, senão aqui; então o que você deve fazer – de fato, o que você tem que fazer – é

[…] tocar minhas lágrimas com seus lábios
Tocar meu mundo com as pontas dos seus dedos
E nós podemos ter o para sempre
E nós podemos amar para sempre.”

Afinal, é aqui e agora que nós vivemos, não noutro mundo ou na eternidade. Mesmo aqueles que permanecem esperando para sempre, sem perceber que não haverá uma segunda chance. “Para sempre é o nosso hoje”, diz nossa canção. Nós podemos fazer melhor: hoje é nosso sempre.

domingo, 15 de agosto de 2010

Festa Literária de Paraty

Terminei de chegar de viagem. Por muito tempo protelei minha ida à Flip, mas este ano consegui estar lá. Ainda bem...
Caríssimos (sei lá quem(s)!), os amantes da literatura, ou melhor, o amantes psicóticos da literatura não podem deixar de ir à Flip. Explico porque...
A Flip é uma Meca dos apaixonados pela literatura. A cidade é linda e tal... mas isto não é o mais importante... (apesar da cidade ser linda mesmo!). O barato de viver a Flip é saber que todos os que estão naquele lugar nutrem uma paixão por uma coisa que também é uma paixão sua!
Eu andava pela cidade, muito bem acompanhado, primeiro por minha adorável mulher (e também apaixonada por literatura) e depois por todos com quem cruzava e olhava nos olhos, encontrando o tempo todo com um companheiro, com gosto, opção ou até mesmo um desvairio pelas letras. É como se encontrar em outras pessoas completamente desconhecidas. Um sentimento diferente, pois ao mesmo tempo em que se está chegando num lugar novo e diferente, as pessoas te tratam como se já te conhecessem ou como se tivessem com você um segredo em comum.
A prova disto está em qualquer um que você queira abordar perambulando pela cidade e perguntar-lhe, sem cerimônias, sobre algum assunto literário. Garanto-lhes: alguma conversa ou até mesmo uma boa amizade poderá sair daí...
É claro que até mesmo o mundo da literatura encontra segmentos e subgrupos, você vai encontrar de fãs da literatura de Umberto Eco à fãs da nova literatura "vampiresca", mas o principal não é isto, o segredo em comum não é este... O segredo coletivo de todos os que vão à Flip, quase como um segredo maçônico, é saber que os outros que estão ali, e que se debandaram de suas cidades sei lá de onde, encontrando tempo e dinheiro, num mundo onde ninguém mais tem tempo e dinheiro sobrando, foram para Paraty para encontrarem outros seres que também fariam o mesmo esforço que você fez, por amor às letras.
Essa é a questão... A cumplicidade sutil de olhares, a gentileza além da normalidade, os sorrisos e a simplicidade com que todos se tratam é que faz a diferença na Flip. Como tratar mal uma alma irmã? Foi assim que me senti lá.
É óbvio que isto não é uma regra geral.. também encontrei seres brutalizados, eremitas mal humorados, antisociais, aproveitadores e criaturas que simplesmente não conseguiram tirar seu manto social tosco e se abrir para o momento que estavam vivendo. Só conseguia dar risada dessas criaturas que ficavam, por exemplo, catando os banquinhos de papelão (de montar) dados pelo Itaú, para levarem para casa (não me perguntem porque!). Me lembro sempre nestes momentos da cena da morte da viúva de Zorba, o grego, onde todos aqueles vizinhos correm, se matando, para ficar com os pertences da velha que acabara de morrer. Ô tristeza de almas pequenas...
Algumas pessoas vão à Flip para encontrarem os autores e tal... todas elas também voltam satisfeitas, pois a cidade é muito pequena e depois das palestras e dos autógrafos os autores sempre estão caminhando para conhecer o lugar e você sempre os encontra quando menos está esperando. A maioria deles é bem receptiva, pelo menos os deste ano foram... Não fui à Flip com este propósito, pois com exceção de Ferreira Gullar, não era anteriormente fã de nenhum dos que estavam lá, no entanto tive boas surpresas com as palestras de Isabel Allende, Benjamin Moser, Luiz Felipe de Alencastro/FHC, Patrícia Melo, Lionel Shriver e Salman Rushdie, na verdade, a maioria delas nem parecia palestra era mais como uma conversa mesmo, bem informal e espontâneo.
Enfim, aconselho muito a experiência aos que nunca foram, pois apesar de não ser uma viagem muito barata (pois os preços em Paraty dobram durante a festa!), é muito revigorante para o espírito dos que extraem prazer dos livros...
Abraço a todos!